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A gastronomia e a mulher

por | jul 10, 2017 | Colunistas, Entrevistas, Notícias

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O primeiro alimento humano verte do seio de uma mulher. Historicamente a primeira lembrança afetiva de um prato de comida vem de nossa avó ou mãe. Nesta lembrança, sabores, cheiros e cores se misturam… E os grandes cozinheiros sabem disso. Admiram isso, reverenciam isso e por muitas vezes se esquecem disso.

Escoffier (cozinheiro que sistematizou a cozinha francesa) (in)justificava a ausência feminina nas cozinhas profissionais, afirmando que os homens são mais atentos aos detalhes.

Há ainda justificativas ditas “protetoras”, baseadas na mentira de que extenuantes horas de trabalho no hostil ambiente da gastronomia profissional não seriam compatíveis com a delicadeza feminina.

A falsa sensação de cuidado e proteção (baseada na falácia do sexo frágil) que segregou e limitou durante tanto tempo a história da mulher na cozinha profissional, ofusca histórias incríveis, como as mères (mães) de Lyon.

A cidade considerada a capital da gastronomia francesa com mais de 2.000 restaurantes, sendo 13 estrelados no Guia Michelin, foi o cenário para histórias dessas incríveis mulheres.

Elas eram as antigas cozinheiras das ricas famílias burguesas locais que, a partir da primeira metade do século XX, não tiveram mais condições financeiras para mantê-las. Algumas decidiram então trabalhar por conta própria ou a serviço de restaurantes… Desde então, os conhecimentos  foram repassados de geração a geração, chegando a gigantes da gastronomia, como o grande mestre Paul Bocuse.

Essa mesma gastronomia que  entendemos por uma expressão artística e cultural, teve seu alicerce em  preconceitos que infelizmente vivemos até os dias de hoje.
E esse mesmo machismo que segregou tanto, também se tornou a prova cabal de que (na maioria das vezes) a provocação e inspiração dos grandes chefes de cozinha é proveniente das mulheres de suas vidas.

A sensibilidade, a delicadeza, a força, a precisão, a resistência. São predicados que aprendemos com as mulheres! A pureza dos sentidos, a delicadeza das formas e cores…

Se não fosse o feminino de cada um destes cozinheiros, a gastronomia, como a conhecemos, estaria profundamente aquém da excelência que experimentamos. A gastronomia contemporânea é a mistura exata do feminino.

Gargouillou de jeunes légumes - Michel Bras

Gargouillou de jeunes légumes – Michel Bras

Falar sobre incríveis mulheres que permeiam o mundo da gastronomia profissional, será sempre sinônimo histórias de superação, lutas e alegrias.

Tive o prazer de conversar com uma dessas mulheres que representam a mudança de paradigmas. Cris Mota, a primeira cozinheira a ganhar reality show “Hell’s Kitchen – Cozinha Sob Pressão” (SBT) me contou um pouco da sua experiência no programa e seu caminho até aqui…

Qual o maior desafio para se tornar uma cozinheira?
Falta de incentivo! Os cursos são caríssimos e a graduação nem se fala. No Brasil, a gastronomia é algo muito novo, ainda é um “sub emprego”,  considerando-se as condições e salários miseráveis pagos diante a responsabilidade que se exige na profissão.

Como foi sua experiência no programa Hell’s Kitchen? Você acredita que esse formato de entretenimento ajuda ou atrapalha o público leigo a conhecer nossa profissão?
Posso definir como uma experiência pesada! Não pelo fato de cozinhar sob pressão, mas sim por ficar muito tempo confinada. Na vida real, se está com a sua equipe e algum cozinheiro pisa na bola e não colabora, você simplesmente manda o cara pro RH e resolve. Já em um programa, não! Tem que ver e conviver com tudo, inclusive com coisas que não concorda. Quanto ao formato do programa, há duas visões que podem ser analisadas. A primeira é a que aparece muito distorcida e bem fora da realidade de uma cozinha profissional que, além de exigir um grande volume e padrão de serviço, ainda não conta com tantas facilidades e equipamentos. Por outro lado, é uma oportunidade para as pessoas enxergarem uma profissão tão deixada de lado.

Estamos passando por um processo de glamourização da gastronomia. Como você enxerga este momento?
É muito chato, porque todos se baseiam em programas de TV e saem ditando regras. As pessoas fazem faculdade de Gastronomia pra serem “chef”? Vai aprender a ser cozinheiro primeiro porque chefia é consequência. Aliás, não passa de um cargo. Falta orgulho dessa moçada bater no peito e dizer que é cozinheiro. Quando comecei a estudar, não existiam esses programas no formato brasileiro. Para eu ter referência e entender que cozinhar profissionalmente era “pauleira” e saber se era genuíno em mim, lutei por uma bolsa e fui estudar e estagiar fora de SP, consegui lugar pra dormir e comer em troca de estágio… Foi assim que comecei!

Como é Cris Mota na cozinha profissional? Você já teve a experiência de chefiar uma equipe? Como foi?
Sim, já chefiei e, na grande maioria, eram brigadas de homens. Sou daquele tipo durona, sabe?! Muito focada. Ou me imponho, ou me engolem! Para isso trabalho duro e estudo o tempo todo, adoro livros, estou sempre me reciclando com cursos e esse ano ainda tem a minha pós graduação. Gosto de reconhecer e incentivar pessoas esforçadas e com talento.

O que você mais aprecia na culinária brasileira?
A diversidade de ingredientes! A maior escola que se pode ter é cozinhar em diferentes regiões, o que te permite conhecer muitas iguarias em um só país. Você também tem que sair da zona de conforto e se virar.

Quais profissionais te servem de inspiração e por quê?
Roberta Sudbrack, Rodrigo Oliveira, Dominique Crenn, Salvatore Loi, Paola Carosella, Alexandre Couillon, Danielle Dahoui, Bel Coelho, Alex Atala, Felipe Bronze, Claude Troigros… são muitos!!! Todos são visionários ao seu modo e levam a gastronomia a sério, ainda há muitos mais na minha lista!

Se você pudesse, o que falaria para você mesma no início da sua carreira?
“+ evolução – perfeição”.

Você enfrentou algum tipo de preconceito ou machismo no mercado?
Sim! Teve Chef que nem receber meu currículo quis por eu ser mulher! Além da diferença no salário, sobram os comentários e piadinhas machistas que já são clássicos, mas se elevam ao quadrado porque também sou gay. Aí já viu, né? Eu acho que, para ter coerência e não ser um tremendo imbecil, não precisa de lado! É só ter bom senso e tratar as pessoas bem. Se colocar no lugar do outro também funciona e é de graça!  Mulheres: dediquem-se, imponham-se e resistam!

Como você enxerga a relação da gastronomia e o fornecimento de matéria prima?
Atualmente, está em crescimento uma vertente dentro da gastronomia que valoriza o fornecimento de matéria prima dos produtores locais. Dessa maneira, cria-se um vínculo sustentável e um grande incentivo para a economia regional, o que garante uma melhor qualidade dos produtos.

Quais são seus planos profissionais?
Primeiramente, pretendo concluir minha pós graduação e continuar trabalhando. Inclusive, ministrando aulas! Depois disso, almejo realizar um estágio no exterior para poder expandir meus conhecimentos e ter a oportunidade de acrescentar uma nova cultura ao meu “terroir”.


Gustavo Guterman

GUSTAVO GUTERMAN

Graduado em Gastronomia no Centro de Formação Internacional Alain Ducasse e pós graduado em Segurança de Alimentos pelo SENAC SP.

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