O enfoque deste artigo é explorar a relação entre cultura e a gastronomia, sendo que este foi baseado no capítulo elaborado por mim e pela minha colega Valéria Fedrizzi intitulado “Turismo e gastronomia: a valorização do patrimônio Gastronômico de Campos do Jordão“, no livro “Turismo, Gastronomia e Desenvolvimento na região das Missões – Brasil“, organizado por Rut Friedrich Marquetto; Magna Liane Bergmann e Vanusa Andrea Casarin, que pode ser baixado gratuitamente na internet.
Percebe-se nos últimos anos a procura por experiências mais intensas, sendo a cultura local um intenso atrativo, tendo a gastronomia como importante representante. Santos (2005) explica que atualmente pode-se perceber uma obsessão pela história da mesa, fazendo com que a gastronomia saia da cozinha e passe a ser objeto de estudo com a devida atenção ao imaginário, ao simbólico, às representações e às diversas formas de sociabilidade ativa. Esse fato se destaca, reforça o mesmo autor, pois o alimento constitui uma categoria histórica, já que os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Apesar de alimentar-se ser um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações.
Esta é a mesma linhada defendida por Marcelo Alvarez (apud GIMENES, 2010, p.192) que explica que a alimentação humana é um ato social e cultural em que a escolha e o consumo de alimentos colocam em jogo um conjunto de fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social e econômica ligado a uma rede de representações, simbolismos e rituais. Considerando-se, portanto, que a alimentação é uma demonstração cultural e que esta vem sendo usada como um interessante recurso turístico, precisamos aprofundar o debate sobre esta relação, entendendo-a como base para se compreender a sociedade.
Acredita-se que um conjunto de práticas alimentares determinadas ao longo do tempo, por uma sociedade passa a identificá-la e muitas vezes, quando enraíza, se torna patrimônio cultural. Isso só é possível, pois o ato da alimentação, mais do que biológico, envolve as formas e tecnologias de cultivo, manejo e a coleta do alimento, a escolha, seu armazenamento e formas de preparo e de apresentação, constituindo um processo social e cultural (SONATI; VILARTA; SILVA, 2010). Dessa forma, a historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Sendo assim, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come, e com quem se come (SANTOS, 2005). Logo, reforça-se que a comida típica que representa uma tradição não necessariamente faz parte do dia a dia de seu povo, o importante é que ela desperte um sentimento de apropriação, que faz com que a comida vista a “roupagem” de seu país de origem (REINHARDT, 2007).
Por isso que, ao se estudar a comida e a alimentação humana tornam-se possível desvendar e identificar, a partir das práticas cotidianas, os valores e significados de certos grupos sociais. A comida tem o significado de recuperar uma memória que, para Rousso (2002, p. 93-101), representa a presença do passado, ou seja, refazer e reconstruir com imagens e ideias de hoje as experiências passadas, “um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido em um contexto familiar, social e nacional”.
Neste processo, o alimentar e sua produção podem se tornar patrimônio cultural alimentar, que como explica Alvarez (2002), passa a representar uma construção histórica, uma concepção e uma representação que é criada através de um processo que intervém nos interesses de classes e grupos sociais que integram uma nação. Poulain (2004) diz ser o patrimônio alimentar uma transformação das representações ligada ao espaço social alimentar, que coloca os produtos alimentares, elaborados ou não, objetos e habilidades utilizadas em sua produção, transformação, conservação, consumo, bem como “os modos de cozinhar”, “os modos de comer e beber”, “as maneiras à mesa” – como objetos culturais portadores de uma parte da História e da identidade de um grupo social.
Neste mesmo sentido, Dória (2009) destaca como a memória e arte na fabricação reportam a um sistema culinário, processo que dá pela maneira prática e objetiva dos homens se relacionarem com a natureza e pelo modo como representam essa relação pela ideologia. Portanto, seriam “modos de construir alimentos”, adotados ou desenvolvidos por uma civilização como solução de problemas em determinada região, levando ainda em consideração o domínio técnico sobre os recursos naturais, o conhecimento do ciclo da vida, os elementos comestíveis, as domesticações das espécies e como esses elementos representam um desafio para o homem.
Juntando-se, assim, o ato de se alimentar, a produção do alimento, aliado à memória, com o local no qual se dá a produção e o consumo, inicia-se uma relação intrínseca entre turismo e gastronomia, unindo dois universos no processo de valorização e reconhecimento cultural regional, tornando-se este um processo harmonioso de troca de experiência e compartilhamento entre visitante e visitado. Pensando-se, ainda, sobre a realidade brasileira, evidencia-se o fato de que, dada a heterogeneidade de sua paisagem geográfica e humana, o Brasil encerra em seu território uma diversidade gastronômica incomparável. Em todos os estados brasileiros há práticas alimentares enraizadas, que terminam por se cristalizar nos chamados “pratos típicos”, sendo que estes acabam por se fixar como símbolos de suas localidades (GIMENES, 2013), atraindo visitantes e movimentando o turismo da cidade.
Como procurei destacar neste artigo, a gastronomia representa a cultura de uma forma dinâmica, sendo que hoje vem atraindo a atenção de diversos segmentos, como o turismo. No ato de alimentar-se, conhecemos um pouco mais da cultura do local, assim como das pessoas que os produzem, aquecendo também a alma (claro, para os que buscam isso e não apenas saciar uma característica biológica). Por isso, indico para cada um que lê este material, que viaje, que coma, que converse com as pessoas e que se abra para um universo magnífico da cultura alimentar.
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, M. La cocina como patrimônio (in)tangible. IN: MARONESE, I. (org.). Primeiras jornadas de patrimônio gastronômico. CPPHC-CABA: Buenos Aires, 2002.
DÓRIA, C. A. A Culinária Materialista: construção racional do alimento e do prazer gastronômico. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
GIMENES, M.H.S.G. Sentidos, sabores e cultura: a gastronomia como experiência sensorial e turística. IN: PANOSSO NETTO, A.; GAETA, C. Turismo de experiência. São Paulo: SENAC, 2010. p.192-202.
Cozinhando a tradição: festa, cultura, história e turismo no litoral paranaense. Curitiba: Editora UFPR, 2013.
POULAIN, J.P. Sociologias da alimentação – os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: UFSC, 2004.
REINHARDT, J.C. Dize-me o que comes e te direi quem és: alemães, comida e identidade. 2007. 204f. Dissertação (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. Disponível em: https://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/handle/1884/15966. Acesso em: 04 dez. 2016.
ROUSSO, H. A Memória não é mais o que era. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. 5 ed. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, p.93-101, 2002.
SANTOS, Carlos Roberto Antunes. A alimentação e seu lugar na história: os tempos da memória gustativa. História: questões & Debates. Curitiba, n.42, p.11-31, 2005.
SONATI, Jaqueline Girnos; VILARTA, Roberto; SILVA, Cleliani de Cassia. Influências culinárias e Diversidade Cultural da Identidade Brasileira: imigração, regionalização e suas comidas. In: MENDES, R. T.; VILARTA, R.; GUTIER- REZ, G. L. (Orgs.). Qualidade de Vida e Cultura Alimentar. São Paulo: IPES EDITORA, 2010, p. 137-147. Disponível em: https://fefnet172.fef.unicamp.br/departamentos/deafa/qvaf/livros/foruns_interdisciplinares_saude/cultura/cultura_alimentarcap14.pdf. Acesso em: 15 jun. 2013.
BRUNA MENDES
Mestre em Hospitalidade, bacharel em Turismo e Licenciada em Pedagogia, mas acima de tudo, apaixonada pela cultura, turismo e gastronomia.
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