A alimentação é um dos principais mecanismos de interação social existente desde os primórdios da humanidade. Contudo, percebe-se que em face ao atual ritmo de vida, esses momentos vêm perdendo espaço permitindo a expansão de áreas especializadas em fast-food. Apesar dessa constatação, ao se analisar com mais atenção, nota-se que a alimentação continua funcionando como um conector de relações sociais, porém com outro estilo. Ao invés das longas refeições, os encontros podem ocorrer em bares, padarias, cafés, pubs e demais pontos que em comum possuem um único aspecto: a alimentação. A partir dessa constatação, procurou-se descrever um pouco mais sobre essas áreas marcadas pela hospitalidade alimentar, demonstrando que a alimentação ainda é um dos marcos mais representativos da conviviabilidade em espaços públicos e privados.
Ressalta-se que este artigo foi publicado em parceria com Regina Coeli C. Perrotta, no Congresso Internacional de Gastronomia Mesa e Tendências de 2012, podendo ser procurado na íntegra nos sistemas de busca virtuais.
Sabe-se que mudanças em decorrência dos novos contextos sociais e econômicos mundiais refletem no sistema alimentar dos diversos povos e culturas. Apesar disso Fonseca et al (2006, p.85) destacam que ao se observar a alimentação de um grupo de pessoas em uma determinada realidade, é possível traçar uma relação direta entre os hábitos alimentares e o cotidiano, já que as refeições passam a ser um espelho da rotina de determinada época, assim como o do contexto social dela. Nesse sentido, Paula (2002) reforça que o conhecimento do preparo dos alimentos e o ritual da alimentação através dos tempos são “atividades simbólicas que permitem a compreensão da evolução e formação das sociedades até os dias atuais”.
No entanto, o ato de conviver atualmente, sob a óptica da alimentação, tem perdido cada vez mais espaço para a vida profissional agitada diante das exigências do mercado de forma geral e obrigações acarretadas pela mesma (FONSECA et al., 2006). Nos dias de hoje destacam-se a alimentação rápida, diminuição dos jantares de domingo com os familiares, entre outros aspectos alimentares. Contudo, pressupondo-se que o ato de alimentar-se envolve, normalmente, momentos de interação social, sendo esse um dos principais mecanismos de conviviabilidade encontrado desde os primórdios da humanidade, é possível ainda identificar a importância gastronômica para a manutenção e criação de vínculos sociais.
Jean Brillat-Savarin (apud ALBERT, 2011) já destacava no século XIX que as refeições são uma preciosa forma de comunicação, já que durante esse momento são oficializadas alianças; além de representar uma demonstração de força convidativa, em que são permitidos todos os artifícios para seduzir os convivas. Boff (2006) destaca que a comensalidade é tão central que está ligada à própria essência do ser humano enquanto humano, supondo a solidariedade e a cooperação de uns para com os outros, permitindo o primeiro passo da animalidade em direção à humanidade.
É nesse sentido que o presente estudo estabeleceu como objetivo identificar os lugares de comensalidade e conviviabilidade dos dias atuais, época caracterizada por problemas sociais, trânsito, distanciamento de uma rotina familiar, entre outros aspectos tidos como modernos. Para tanto, pressupõe-se como base direcionadora do estudo de que a alimentação tem o poder de unir as mais diferentes pessoas em um momento tido como sagrado e coberto de rituais: a troca alimentar. Baseando-se em um levantamento bibliográfico e uma observação assistemática dos principais locais de conviviabilidade modernos, delineia-se esse primeiro trabalho acerca do tema, buscando-se valorizar refeições e esses momentos de interação social.
Entendendo a Conviviabilidade
A palavra conviviabilidade tem a mesma etiologia da palavra convivas, que remete aos tempos do Império Greco-Romano, onde eram praticados os grandes banquetes, nos quais as pessoas que participavam eram denominadas convivas. Como relata Franco (2001), os banquetes constituíam os principais acontecimentos da vida social, com número de convivas variando segundo a norma da época e composto de duas fases: a primeira em que se comia, e a segunda, denominada simpósio, onde se bebia e conversava-se sobre algum tema escolhido.
No sentido amplo e genérico, pode-se entender que o termo convívio contempla aspectos de divisão de alimentos e de interação social, sendo a proximidade um pré-requisito essencial para a efetivação da conviviabilidade. A ideia de compartilhar o alimento se associa ao princípio básico da hospitalidade: o prazer de satisfazer as necessidades dos outros que, explicado por teorias psicológicas, gera uma recompensa acima de tudo emocional e que faz parte da condição humana (PAULA, 2002).
Entretanto, para a existência da conviviabilidade deve existir um lugar de convívio, onde as trocas culturais ocorram. Oliveira e Calvente (2012) partem da premissa que a espacialidade é um momento das relações sociais “geografizadas”, entendendo-se que o momento das relações, ou seja, conviviabilidade, depende de um espaço para se realizar. Este espaço pode ser uma festa de aniversário, um casamento, um encontro entre amigos, ou até mesmo um evento globalizado, desde que levem os indivíduos a um convívio. Bárbara (1999) reafirma que as relações interpessoais ocorrem nos mais diversos espaços, sejam eles públicos ou privados, reunindo ambos os gêneros, ou simplesmente pessoas do mesmo gênero para a prática da sociabilidade, que tem íntima relação com o espaço da comensalidade, uma vez que, a comida é um atrativo para as pessoas se reunirem.
Ainda sobre a relação entre espaço e comida, Freedman (2009) alerta que a comida até pode ser reflexo do meio ambiente em que se encontra, porém não é totalmente determinada por ele. Tal afirmação pode ser explicada pelo fato de que os gostos e preferências alimentares são determinados ainda na infância, indicando que o meio, através das pessoas, influencia as escolhas. Entretanto, na vida adulta, o meio ambiente torna-se um reflexo mais amplo, fazendo com que o gosto, como enfatiza Franco (2001) seja moldado culturalmente e socialmente, colaborando com o desenvolvimento de um gosto eclético, o que significa a ruptura com o mundo da infância e portanto, autonomia e maturidade.
Retomando o aspecto do convívio entre os indivíduos, pode-se reafirmar as palavras de Campos (2008) que relaciona a conviviabilidade ao conceito de hospitalidade, uma vez que, determina que a hospitalidade traz aspectos de confortabilidade, receptividade, sociabilidade, alimentação e lazer, não tendo conceito único e universal, variando de tempo em tempo e de lugar a lugar.
Exemplos de Conviviabilidade Moderna
Segundo Henrique e Custódio (2010) o valor da identidade gastronômica contempla a gastronomia como um ritual secular tendo como elemento valorizador o lugar, e o espírito do lugar, levando ao entendimento de que a conviviabilidade em locais, eventos e festas, relaciona o ser humano pela troca de informações e experiências, tendo como aliado o prazer de se alimentar.
Porém, ao simplificarmos nossos olhares, percebemos que a interação social pela alimentação, considerando-se a conjectura atual, ocorre em diversas áreas. Por exemplo, podem-se citar as inúmeras padarias espalhadas pelas cidades, onde antes, durante ou após o trabalho, as pessoas param para tomar um café ou se alimentar rapidamente e aproveitam para conversar. Especificamente na cidade de São Paulo, podem-se destacar diversas padarias que funcionam como ponto de encontro, apresentando ao comensal diversas opções no cardápio, citando a Bela Cintra Padaria, a Casa Blanca, além do Paraíso dos Pães, com funcionamento 24 horas.
Seguindo o mesmo conceito do café da manhã, destacam-se as pessoas que montam pequenas estruturas para servir café e bolos elaborados em casa nas ruas de São Paulo. O serviço começa em torno das 5h30 da manhã até às 11h em média, sendo o seu público fiel. Durante essa pequena parada, as pessoas conversam sobre temas variados, desde futebol ate política, compartilhando vivências e experiências individuais.
Outra ocupação dos espaços públicos ocorre com a venda de cachorro quente, frutas, pipocas e demais produtos. Em todos, percebem que mesmo preocupadas com o tempo, as pessoas conversam sobre diversos assuntos enquanto se alimentam, sendo esse um momento de interação social adaptado ao estilo de vida atual.
Já os restaurantes e bares, tornaram-se locais de conviviabilidade bem expressivos, fato que podemos exemplificar com a instituição do chamado “happy hour”, um momento de descontração e trocas afetivas entre as pessoas após o período do trabalho. Outro exemplo que manifesta os bares e restaurantes como espaços de conviviabilidade moderna são os inúmeros concursos gastronômicos que vem acontecendo para eleição de pratos novos, com apelo de criatividade e inovação, que envolvem a participação dos clientes no resultado final da eleição, demonstrando que a gastronomia e o convívio aliado ao prazer são indissociáveis. Rolim (apud BARBARA, 1999) enfatiza que o gosto e o prazer são realidades que se manifestam nos menores detalhes do cotidiano, sendo bares e restaurantes, os locais propícios para estas manifestações, onde ocorrem a partilha de alimentos, bebidas e emoções, demonstrando que a conviviabilidade e a comensalidade caminham próximas.
Outro aspecto que expressa o convívio social na modernidade faz referência à Arquitetura, uma vez que, um dos ícones de conviviabilidade atual, são os chamados espaços gourmet, que traduzem mais uma vez a relação entre a gastronomia e a socialização dos indivíduos. Loyo (2011) destaca que esta tendência que está em voga, valoriza as atividades de convívio e interação, podendo ser atribuído do ponto de vista cultural, ao hábito mineiro de receber as pessoas em suas casas, sempre na cozinha, conversando, comendo e interagindo. Valery (2011) reitera este conceito, ao afirmar que surgiu um novo cômodo nas residências brasileiras, concebido para a recepção dos amigos e apreciação de comes e bebes.
Ao relacionarmos as festas e a gastronomia, percebe-se que as festas gastronômicas ou festas ligadas a produtos agrícolas possuem origem europeia e que no período colonial brasileiro, parte daquilo que era consumido tinha relação direta com a colheita (OLIVEIRA e CALVENTE, 2012). Esse aspecto guarda semelhanças com as festas atuais que visam valorizar os produtos da terra, sendo estas festas nomeadas pelos produtos que dão destaque a localidade, como: Festa da uva de Vinhedo, Festa do Figo de Valinhos, Festa do Pequi de Montes Claros, Festa do Tomate de Paty do Alferes, dentre outras. São momentos como esses que Bezerra (apud OLIVEIRA; CALVENTE, 2012) destaca como o momento em que os homens alcançam os mais altos níveis de sociabilidade, uma vez que são fenômenos primordiais e indissociáveis da civilização, onde refletem-se o modo como os grupos sociais pensam, percebem e concebem o seu ambiente.
REFERÊNCIAS
ALBERT, J.M. Às mesas do poder: dos banquetes gregos ao Eliseu. São Paulo: SENAC, 2011.
BÁRBARA, G.G.S. A Boêmia Curitibana nos anos 50: a sociabilidade masculina nos bares de Curitiba. Monografia de conclusão do curso de História da Universidade Federal do Paraná, 1999.
BUENO, M.S. Hospitalidade no jogo das relações sociais. São Paulo: Vieira, 2008.
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FONSECA, M.T; FERRETI, P.E.Z.; BORGES, A.M.B.; ABREU, L.G. Comer e beber: reflexões sobre o convívio e o cotidiano. Revista Hospitalidade. Ano III, n.01, 2006. p. 85-98.
FRANCO, A. De caçador a gourmet. Uma história da Gastronomia. São Paulo: Senac, 2001.
FREEDMAN, P. A história do sabor. São Paulo: SENAC, 2009.
GRINOVER, L. Hospitalidade: um tema a ser reestudado e pesquisado. IN: DIAS, C.M.M. Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Manole, 2002. p.26-37.
HENRIQUES,C.; CUSTÓDIO, M.J. Turismo e Gastronomia: a valorização do patrimônio gastronômico na região do Algarve. Encontros científicos. Faro n.6, 2010.
LOYO, C.H. Disponível em https://www.lugarcerto.com.br. Acesso em 24 ago 2012.
OLIVEIRA, A.N; CALVENTE, M.C.M.H. As múltiplas funções das festas no espaço geográfico. Interações. Campo Grande v.13,n.1,p.81-92, jan/jun 2012.
PAULA, N.M. Introdução ao conceito de hospitalidade nos serviços de alimentação. IN: DIAS, C.M.M. Hospitalidade: reflexões e perspectivas. São Paulo: Manole, 2002. p.69-81.
PAULA, N.M. Planejamento e gestão da hospitalidade em restaurantes. IN: DENCKER, A.F.M. Planejamento e Gestão em Turismo e Hospitalidade. São Paulo: Thomson, 2006. p.149-166.
VALÉRY, F. D. Da casa de família ao espaço gourmet: reflexões sobre as transformações de morar em Natal/RN. Cadernos Ceru v.22n.1 jun., São Paulo, 2011.
Foto: Banco de Imagens
BRUNA MENDES
Mestre em Hospitalidade, bacharel em Turismo e Licenciada em Pedagogia, mas acima de tudo, apaixonada pela cultura, turismo e gastronomia.
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